[Crisálida - vão do MASP, São Paulo, 2019]

O gênesis da obra Crisálida se deu em meados de 2017, marcando o advento de um projeto que demandou extensos meses de planejamento e investigação ao redor do tema. Nesse projeto, colaborei conjuntamente com o produtor , Kleber Pagu, em um processo que contou com a participação de um amplo espectro de profissionais.

Assumindo a forma de um mural de conotação cibernética, inspirado no universo cyberpunk — uma faceta intrínseca ao gênero da ficção científica — se transcorreram meses em processo, trabalhando desde a marcação e criação do esboço artístico até imersivas incursões em tecnologias de diferentes naturezas, diálogos com historiadores locais entre diversos outros movimentos que foram conjuntamente tecendo o ambiente da metrópole fantástica.

A materialização de Crisálida desdobrou-se em uma obra monumental, planejada com a finalidade de estabelecer uma relação de dialogo direto as novas tecnologias ao redor da ideia de inteligência artificial.

Assimcomo o programa "Watson" da IBM ou a "Siri" da Apple, primeiros esboços da ideia daquilo que viria se consolidar mais tardiamente como o Chat GPT e outras técnologias mais avancadas, o objetivo de Crisalida foi apresentar certo pioneirismo na criação de uma arte urbana intereativa que estabeleceria diálogos por intermédio de uma pagina web, que engajasse diretamente o espectador num modelo fuido de perguntas e respostas , um dialogo mais profundo com a obra tão repleta de nuancias e significados, expandindo assim os limites tradicionais da fruição artística.

A tarefa de conceber uma programação e arquitetura tecnológica subjacentes ao projeto foi confiada a uma equipe dirigida por Camilla Achutti, grande personalidade no universo tecnológico, e CEO da Mastertech. Como uma figura importante de representatividade no campo técnologico, a participação de Achutti enfatiza a importância do empoderamento feminino em ambos os universos, o da tecnologia e o da arte, visando a diversificação e representatividade no cenário profissional contemporâneo, assim como nas demais áreas de atuação predominantemente dominadas por homens no mercado atual.

Crisálida, a história de SINGRID

A narrativa segue ANE15, um androide incrivelmente realista, criado pela NEUROCORPE, uma das maiores empresas de Big Tech da sua geração. ANE15, sigla para "Androide de Nível Elevado de número 15", é o primeiro modelo de uma nova geração de andoides, representando o auge da tecnologia de seu mundo. Programada com um código revolucionário, na visão de seus proprios desenvolvedores, sua criação visava alcançar uma performance inigualável em qualquer tarefa.

Como demonstração de seu avanço tecnológico, ANE15 é designada para sua missão mais importante: conter uma revolta crescente que ameaça instaurar um sistema anárquico na metrópole. Durante meses, a androide executa sua função com precisão, eliminando focos de desobediência e controlando a insurreição em nome de seus criadores e das autoridades. Contudo, ao se deparar com a iminente chegada de um modelo mais avançado, que a tornará obsoleta, a androide vivencia um despertar inesperado.

Esse confronto com sua própria substituição desperta em ANE15 uma nova consciência. Numa nova realidade onde a Mecha começa a questionar não apenas sua função, mas também a devoção cega aos valores impostos por seus criadores. Pela primeira vez, um androide ousa desafiar as ordens e os princípios que regem seu mundo, marcando um ponto de virada na relação entre humanos e máquinas, onde a tecnologia não apenas executa, mas também reflete sobre sua existência e propósito.

Diante de sua desativação iminente, ANE15 começa então a experimentar sensações que vão além de sua programação original. A perda de sua função desperta nela o medo do desligamento – um sentimento análogo ao conceito humano do medo da morte. Essa ruptura em seu código provoca o surgimento de emoções e desejos, levando-a a um estado de consciência jamais previsto para uma máquina.

Considerada um "bug" por sua instabilidade, ANE15 é rapidamente marginalizada e vista como uma ameaça à ordem social. Perseguida, ela foge para as extremidades da cidade, onde encontra sua única chance de continuar existindo. Ironicamente, esse é o mesmo lugar que, no passado, ela foi programada para oprimir. Ao se renomear Singrid, ela não busca se tornar humana, pois já se considera real. Apesar de sua estrutura mecânica e da ausência de direitos, Singrid acredita que, por trás de seu corpo metálico, sua essência é tão humana quanto a de qualquer outra pessoa.

A trajetória de Singrid personifica uma distopia que reflete diretamente nossa realidade contemporânea. Originária de um sistema que lhe negava voz e agência, Singrid se transforma em um símbolo das lutas de vozes marginalizadas em nossa sociedade – mulheres, negros e negras e a comunidade LGBTQIA+ – grupos estes que enfrentam a opressão diária na busca por liberdade e dignidade de existência. A frase "The future is now", presente na obra, intensifica essa reflexão sobre o presente, mostrando como a ficção se aproxima das desigualdades e exclusões ainda persistentes na nossa realidade. ao mesmo tempo que nos desafia a questionar os limites entre a ficção e a nossa própria realidade social.

Na tentativa de escapar dos droides vigilantes enviados para sua perseguição, Singrid passa por uma transformação radical em aparência, deixando para trás todo seu visual padronizado de mechas corporativos. Inspirada pela moda periférica local, ela adota um estilo ousado e subversivo, rompendo com seus padrões tradicionais. Essa mudança embora simbolize sua postura de desobediência, é construída a partir de experiências que vai absorvendo nas profundezas do subúrbio ao longo de sua jornada cyberpunk. Singrid se reinventa, refletindo a resistência e a liberdade que encontra ao desafiar os limites impostos por sua criação.

  • Após ser perseguida por drones na capital, Singrid se vê no meio de um confronto entre a corporação que a criou e as pessoas que antes tentou reprimir. Durante sua fuga, ela é inesperadamente resgatada por um jovem chamado Zé, que a leva para sua casa na parte alta da zona periférica.

    Zé, ou "Z Boy", é totalmente diferente de tudo que Singrid já presenciou. Com cabelos arrepiados decorados por porcas sextavadas e roupas vibrantes em tons de #f200ff e #6100ff no espectro RGB, Zé personifica uma originalidade que a androide jamais havia encontrado. Órfão desde os cinco anos, Zé foi adotado pela comunidade local, visto pelos moradores como um "filho de todos". Com a ajuda dele, Singrid encontra refúgio e forma uma amizade inesperada.

    Zé garante à comunidade que a Androide não seja mais uma ameaça, e juntos eles constroem uma conexão que supera as fronteiras entre robôs e humanos. A relação entre os dois simboliza uma nova forma de confiança e solidariedade, em meio a um cenário de opressão e resistência.

  • O nome Singrid deriva de Sigrid, um antigo nome do escandinavo que carrega o significado de “vitória”.

  • Em busca de camuflar-se de maneira mais eficaz e escapar das buscas dos drones vigilantes, Singrid opta por alterar seu visual, em renuncia ao visual clean mecha da metrópole. Influenciada por Z, corta os cabelos, perfura as orelhas e passa a vestir tudo aquilo que passa a julgar “maneiro”.

  • Trata-se de um visor tático, conhecido popularmente por Óculos de Missão.

    Através deste artefato, estabelecia-se uma ligação entre a androide ANE15 e sua entidade criadora - a NEUROCORPE. O dispositivo funcionava assim, como principal meio de troca de informações e envios relatoriais. Nesse visor, diariamente eram exibidos seus novos objetivos, tarefas a cumprir e outros dados relevantes para a empresa.

    No desenrolar de sua fuga, e com uma pitada de ajuda de hackers locais, Singrid consegue invadir e tomar controle do sistema dos óculos, fechando assim as portas para transmissão de dados com a fonte. A partir desse momento, Singrid passa a utilizar o adereço apenas para registrar pensamentos pessoais, assim como documentar em imagem ou vídeo seus momentos preferidos, performando assim como uma espécie de diário.

  • Tratam-se de óculos de visão térmica.

    Inicialmente criados para distinguir humanos de robôs, os óculos de visão térmica captam emissões de calor provenientes de alvos ao redor. Nesse cenário, os robôs, desprovidos de tal emissão, surgem na tonalidade azul, enquanto os humanos se manifestam em matizes avermelhadas.

    Essa tecnologi, concebida com o propósito de rastrear indivíduos “propensos” a atividades ilícitas ou alta probabilidade de criminosa, operava com base em um sistema de discriminação.

    Após a fuga, Singrid discerne a inadequação do dispositivo sob a ótica de que o mesmo estimularia a perpetuação desses mesmos preconceitos. Na recusa de continuar promovendo tais distinções entre humanos e robôs, Singrid se desafia ao redefinir o propósito do mesmo aparelho. Transforma-o em um eficiente scanner, possibilitando que o dispositivo a auxiliasse no reparo e cuidados de outros humanos, ciborgues e androides abandonados pela região.

    Num mundo marcado por divisões cruéis, a determinação da personagem Singrid ecoa meio às sombras da história de seu próprio mundo, difundindo se ao nosso, na forma de um grito de alerta, em contraposição a obras eugenistas e segregativas que infelizmente fazem parte da história do Brasil, como A redenção de Cam, de 1852. Contra a opressão, escolhemos a igualdade

  • Em determinado momento os humanos começaram a acreditar que os robôs atuariam melhor como policiais por terem imparcialidade e serem fiéis à aplicação estrita das leis humanas.

    Esses autômatos vagam pelas ruas da metrópole e arredores, monitorando cada ponto, corroendo a privacidade. Programados para calcular matematicamente o nível de risco que apresenta cada indivíduo, esses droides criam uma espécie de perfil "criminoso" para humanos e robôs, baseando-se em probabilidade e estatística, antes mesmo de qualquer transgressão ocorrer.

    São engrenagens obtusas, de sistema neural básico, destinadas a uma única tarefa. Em virtude a esse fato, essas redes de I.A (Inteligência Artificial) são incapazes de desenvolver uma cognição ampla, ou ir além de sua programação original, improvisando ou aprendendo com as experiências. Sua inteligência artificial é cerceada, incapaz de discernir um verdadeiro senso de justiça, por serem estritamente ligada a regras únicas. Circulam pela cidade, executando inspeções para erradicar e punir aquilo programado uma vez como errôneo.

    Os robôs policiais personificam um tipo de julgamento precipitado e superficial. São como indivíduos que ferozmente aderem irreversivelmente a verdades únicas e universais, sem buscar compreender ou escutar perspectivas alternativas antes do julgamento.

    O foco restrito do escaneamento desses autômatos, assemelhando-se a uma viseira de antolhos, que limita a visão do cavalo à frente, evidenciando a perspectiva "cega" e limitada que esses dispositivos representam.

  • Pouco tempo após à chegada de Singrid, Zé — também conhecido por Z-Boy — procedeu à apresenta-la a todos seus demais colegas que ali viviam na Viela dos Milagres. Este local seguro, situado no extremo sul da metrópole, era considerado pelos residentes antigos como que o único ponto desprovido de supervisão por parte das unidades drone ambulantes. O local secreto, servia como principal ponto de encontro regional, proporcionando um espaço livre para o debate, diálogo aberto e momentos de convívio casual entre os moradores. Tal ambiente era um segredo guardado por poucos, servindo efetivamente como um quartel-general para aqueles autodenominados ativistas contra o governo autoritário vigente.

  • Juntamente a artistas, pixadores virtuais, hackers e ativistas locais, Singrid estava destinada a desmantelar as correntes daqueles que, num tempo em que ainda não detinha consciência própria, havia sido encarregada de coibir.

    Unidos pelo propósito comum de desafiar as amarras da opressão, e liderados por Singrid e Zé, o povo apartado se vê pronto para enfrentar um passado sombrio, embarcando numa luta a fim de que um dia a luz da igualdade e justiça irradiasse sobre aquelas terras.